Pouca gente realmente lê a poesia de Jorge Luis Borges (e muito menos a sua literatura ensaística, de grandíssima verve). O autor é muito mais celebrado pelos seus contos, por ser o grande representante (ao lado de Gabriel Garcia Marquez, talvez) do chamado realismo fantástico. Borges é bem maior do que o membro de uma moda ou movimento literário: era um prosador de imensa habilidade, um amante dos livros (o amor que Villon ou Petrarca dedicam às mulheres, em suas obras, Borges dedica às edições raras, enciclopédias semi-fictícias e compilações de histórias fantásticas), e - por incrível que pareça - foi um grande poeta.
Aqui vai um dos seus poemas traduzidos por mim.
A primeira estrofe desse poema já é o bastante para que ele fique na memória de qualquer um que o lê, para sempre. O maior dos pecados é não ser feliz. Uma proposição que considero muito conectada aos Evangelhos - vejam por exemplo, no Evangelho de João, qual é o propósito que Jesus atribui a sua pregação: Tenho dito estas palavras para que a minha alegria esteja em vocês e a alegria de vocês seja completa. Ou o mandamento paulino para a igreja da Tessalônia: Alegrem-se sempre!
Portanto, o que Borges diz não é nada absurdo. A maior transgressão contra a vida é não desfrutá-la plenamente, com a coragem que isto exige. Me lembro de Ariano Suassuna, que pôs na boca da Compadecida as palavras: Adorei o seu gracejo. Quem gosta de tristeza é o diabo.
uma justificativa
Uma tradução do castelhano pode parecer algo supérfluo, ainda mais com um poema curto, escrito em uma linguagem muito próxima da que encontramos na oralidade - e afinal, são línguas quase que mutuamente compreensíveis. No entanto, é um poema com enjabements (um verso que não termina com o fim do verso, como ocorre já no segundo verso do poema, deixando uma frase pendente) muito desafiadores. Tentar adaptá-los com a função que deve ter um enjabement (causar surpresa e espanto, ou mesmo aquela sensação de que um verso termina em um cliffhanger) na língua portuguesa, mantendo as rimas e o metro foi algo bastante complicado.
Mas chega de justificativas, de notas técnicas, de empilhar citações que gosto. Espero que a tradução esteja do agrado, boa quarta feira e boa semana.
O remorso
Cometi o mais grave dos pecados
que pode cometer um homem: não
fui feliz. Que os gelos do olvido, então
me arrastem e me percam, desalmados.
Os meus pais me engendraram para o jogo
arriscado e charmoso desta vida
e para a terra, a água, o ar e o fogo.
Burlei: não fui feliz. Não foi cumprida
sua jovem vontade. Minha mente
se aplicou às simétricas porfias
das artes, que só fazem ninharias
Me deixaram valor, não fui valente.
Não me abandona, está sempre ao meu lado
a sombra de ter sido um desgraçado.
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El remordimiento.
He cometido el peor de los pecados
que un hombre puede cometer. No he sido
feliz. Que los glaciares del olvido
me arrastren y me pierdan, despiadados.
Mis padres me engendraron para el juego
arriesgado y hermoso de la vida,
para la tierra, el agua, el aire, el fuego.
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida
no fue su joven voluntad. Mi mente
se aplicó a las simétricas porfías
del arte, que entreteje naderías.
Me legaron valor. No fui valiente.
No me abandona. Siempre está a mi lado
La sombra de haber sido un desdichado.
“Alguns filósofos “se debruçaram” sobre o tema da felicidade e de bruços cochilaram e cochilando não ouviram a felicidade os chamando pra brincar”. (Ouvi essa de um morador de rua na vila que morei aqui no interior do Paraná, grande Diogenes, grande também foi a escolha de nome por parte da mãe dele).